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TEXTOS CRÍTICOS

A OPACIDADE DE LOURDES COLOMBO
Sergio Romagnolo. 2017

As Pinturas de Lourdes Colombo mostram figuras femininas, à princípio, com uma certa sensualidade, comuns nas mídias nos nossos dias. Num segundo momento depara-se com expressões inesperadas, quase de dor, distorções exageradas e pequenas deformações físicas. São pinturas que ativam as áreas de questionamento e obrigam o observador a se colocar num jogo lógico de significados e se recolocar frente à elas. São pinturas que dificultam a passividade. Agem nas questões da libido e ao mesmo tempo desmontam o discurso erótico colocando desnudado quem as vê.

As mulheres parecem ser familiares, pessoas que habitam as cidades e as lojas, quase todas muito jovens, mostrando um rosto que não combina com as cenas propostas nas telas. Uma sala rodeada por mulheres, olhando quem as olha, fixamente, interrogando e se colocando num lugar que é um não-lugar, sem casa, sem móveis, sem luz ou sombra, tudo armado para um momento de reflexão, que não se esquece tão facilmente.

As figuras representadas olham de volta com olhar medusante, como diz Hubert Damisch em seu livro A Origem da Perspectiva, esse olhar congelado quando se olha para os próprios olhos no espelho. Esses corpos esticados como bonecas de pano desafiam e atraem pelo mistério que eles contém.

Em alguns momentos parecem dançar, em outros, parecem posar como modelos que se deixam fotografar. Existe uma certa teatralidade, como personagens, em uma peca, atuam como em um roteiro escrito por elas mesmas.

São mulheres solitárias, em uma vitrine, esticadas, dentro das telas, sem volume, sem expressão, com seus fundos monocromáticos e opacos quase como pinturas abstratas, são pinturas que representam quando se olha de longe e se abstraem quando de perto, a sensualidade aparece de longe e o drama vem quando perto.

Sergio Romagnolo. 2000

O impacto que a crescente participação das mulheres nas mais diversas atividades, desde a força de trabalho à produção intelectual, tem tido sobre o mundo atual ainda não foi muito bem entendido e administrado. Este aumento da participação feminina tal como se verifica claramente hoje, pode em parte ser atribuído ao advento da pílula anticoncepcional nos anos sessenta e suas decorrências. O fim da arte moderna nos anos setenta seria uma das inúmeras consequências do ingresso das mulheres no circuito da arte. Se fosse possível fazer outra grande generalização, teríamos que: a arte moderna. formalista e linear, poderia ser identificada com a maneira do homem ver e entender o mundo. A arte atual, não moderna e conteudista, poderia ser identificada com o modo elíptico, feminino de ver o mundo. Sendo que hoje o modo elíptico e conteudístico já foi assimilado vários artistas. No Brasil o modo elíptico de fazer arfe ocupou grande parte da produção artística, assim como o fato de artistas mulheres terem tido um papel de destaque na história da arte brasileira. Lourdes Colombo é urna destas artistas. que constrói sua poética dentro desta tradição brasileira. Suas obras não buscam uma constante formal, ao contrário estão a serviço de uma expressividade que se amarra em conteúdos temáticos. pessoais e abertos. Lourdes tem uma fase inicial de pinturas reducionistas. planares, a partir de cores derivadas das cartelas de maquiagem. Rosas, vermelhos e tons de sua pele, eram as cores escolhidas. Estas pinturas se contrapõem às pinturas tradicionalmente planares como Ad Reinhardt, Barnett Newman, e Mark Rothko pelo inusitado das cores que existem como objetos reais e não como representação de um espaço. Posteriormente Lourdes dedicou-se ao tema da sedução e da plasticidade dessa sedução. Construiu objetos de veludo vermelho, massa de batom e pinturas feitas com a própria maquiagem, A fotografia e o vídeo surgiram como forma de documentar a plasticidade da construção da sedução e trouxeram para suas obras o elemento teatral. Em sua última série de fotos a artista faz uma inversão no processo: ao invés de a maquiagem ser o tema das pinturas, agora a pintura é o tema da maquiagem. Ou seja, a maquiagem é feita como se fosse uma pintura em uma tela. A série intitulada "Máscaras Brancas". apresenta retratos do rosto de uma mulher, ela mesma, pintada com creme branco e os olhos e boca vermelhos de batom. A imagem evoca de forma ambígua o rosto de um palhaço e ao mesmo uma pintura fora da tela. Algumas fotos têm uma expressão meiga e doce, outras, quando a figura olha para longe, apresentam um discurso narrativo e cinematográfico. Lourdes Colombo está circundando o problema estético e utilizando as artes plásticas para olhá-lo sob diversos ângulos e reconceituar a atividade artística, suas soluções procuram embrenhar-se em significados e de certa forma misturar-se à própria vida.

MÁSCARAS
Por Katia Canton. 1998

O trabalho de Lourdes Colombo alude diretamente à sensibilidade feminina apresentada em sua sexualidade, sua vaidade, sua afetividade. E nessa escavação interior, baseada em um universo sensual, tratado ritualisticamente que a artista se aproxima de Lygia Clark. As obras de Lourdes Colombo, instalações construídas com múltiplos materiais e suportes, tomam corpo como verdadeiras armadilhas de sedução, sutilezas e contradições emblemáticas de um universo feminino. Anteriormente, a artista criava ambientes repletos de uma iconografia obsessivamente sensual, como mesas cobertas por lingerie vermelha e preta, penteadeiras abarrotadas de cosméticos e batons, almofadas brocadas de pérolas e cobertas por ursinhos de pelúcia. A domesticidade ligada ao universo feminino também tomava corpo em objetos como penteadeiras ou gaiolas de pássaros e materiais como veludo e pérolas, que remetiam a órgãos sexuais femininos. Sua atual série de Máscaras, feitas de camadas de batom sobre o rosto, captam a essência de sua preocupação com o fetiche da feminilidade. Grossas camadas de vermelhos e rosas cobrem a face da artista, que assume a persona de atriz/performer/vítima. O efeito é dramático. Exala sexo, exuberância e violência. Um estranhamento dentro do mundo previsível dos artifícios e clichês ligados ao imaginário da sedução feminina. Por outro lado, as máscaras, captadas no movimento que as materializam, permitem, outras leituras. Na ação de colocar e tirar o batom, as máscaras aludem à dicotomia entre aparência e essência. No ato de demaquiar-se, a "casca" de batom sai do rosto, que fica aparente, escancarado. O casulo do corpo é abandonado e a face, com suas estateladas verdades, fica à flor da pele.

O AVESSO DA VELADURA

Katia Canton. 1999

A manipulação do tecido. A invenção do véu. Exercícios de simulacro. Um mergulho no espelho de múltiplas facetas. O feminino que se liquefaz. Lourdes encarna personas. É no jogo autorreflexivo dos papéis devotados à mulher em diferentes tempos, culturas e situações cotidianas que a artista retira a matéria-prima para sua obra. Maquiagem, véus, enfeites tornam-se elementos de um jogo em que cores e formas sempre convergem para um único foco: o da autoimagem. Em termos estratégicos, Colombo pode ser identificada com a norte-americana Cindy Sherman. Tal como Sherman, Colombo fotografa a si mesma com diferentes adornos, poses, expressões. Porém, na linguagem conceitual e no teor emocional de Sua obra, Lourdes Colombo torna-se o avesso de Cindy Sherman. Enquanto a artista norte-americana empresta sua imagem pessoal—transformada pelo uso de figurinos, máscaras e próteses que invariavelmente escancaram o artifício—para comentar. por exemplo, o estranhamento dos clichês associados à imagem da mulher nos filmes B, ou ainda reinterpretar obras-primas da história da arte, Lourdes Colombo utiliza-se de mulheres e assuntos diversos para apontar um feminino universal no qual ela pessoalmente se inclui. Em Sherman, por baixo da pessoa existe o artificio deliberado. Em Colombo, baixo do artificio existe a própria pessoa. A obra de Sherman é sobre alteridade. A de Colombo clama identidade. O trabalho de Lourdes Colombo é uma espécie de espectro de Narciso. Simbolicamente, ela se olha no espelho até penetrar em sua própria imagem virtual. Nessa série, a artista propõe um jogo de sedução e denúncia, manipulando um tecido de voal que se transveste de véu recobrindo a face de uma mulher árabe. O tecido do véu é feito de transparência, leveza e brilho. São fios infinitos que recobrem a magia e a complexidade de um rosto feminino. Ele evoca um ritual de veladuras, que culturalmente esconde 0 rosto da mulher a partir de sua primeira menstruação. É quando, na cultura e religião islã, a mulher torna-se um objeto de desejo que deve ser preservado da curiosidade e da volúpia masculina. Pois o véu se estrutura da ideia misteriosa de um desejo potencial. Símbolo da repressão, 0 véu torna-se também uma “quase máscara", que alude à dissimulação e ao fingimento. Ele falsifica uma situação, A velação carrega em si um forte apelo erótico, tornando-se palco para o voyeurismo masculino, fonte inesgotável de fantasias. Oculta e seduz pelo som das joias que balançam com o andar, pelo porte das silhuetas, perfume que preenche os rastros. O véu, paradoxalmente, dá à mulher a liberdade do anonimato. Esconde a mulher do olhar masculino, mas libera seu próprio olhar para o mundo externo. Lourdes Colombo sabe jogar esse jogo de oposições. Torna o observador cúmplice de um trocadilho de identidades, construídas ludicamente. Perverte a própria de uma crise identitária que recobre o momento histórico contemporâneo. Em suas montagens, a artista cria um cenário para ser penetrado emocionalmente. Ela constrói um verdadeiro labirinto de voal que suga o espectador por entre os mistérios de suas dobras à procura de sentimentos e intenções. O véu, instrumento que enclausura, esconde, priva, protege, abafa a expressão da mulher, torna-se, na estratégia da artista, um eficaz instrumento de crítica, contestação, duplos sentidos. Suas camadas de tecido brilhante encobrem mágoas, projetam desejos, refletem o olhar do observador. De fato, nas dobraduras dos véus, a artista manipula conceitos de público e privado. Por trás das aparências e do artificio de uma encenação, Colombo revela nuances de verdade e nos chama para uma compreensão interna da alma feminina. A artista articula o paradoxo da falta de liberdade da mulher de véu, criando olhares profanos e poses desafiadoras, semirreclusas por trás do voal. Na sequência de fotografias, a relação da mulher com o véu e o espelho parecem perder os contornos figurativos. Tornar-se uma abstração. No processo, Lourdes Colombo cria um discurso subversivo, às escondidas, que destrói e desconstrói regras sociais congeladas em séculos de opressão. A artista abstrai e descongela essa imagem até que o observador perca a mulher reprimida de vista. Finalmente, a imagem torna-se liquefeita. O véu parece derreter e transformar-se num líquido que escorre e borra aquela velha figura da mulher velada.

 

DECANTAÇÃO DA ALMA

Angélica de Moraes. Março de 1997

A sedução é um jogo que perpassa tanto a relação amorosa quanto grande parte da criação e fruição da arte. Não por acaso, há fatos artísticos que ao primeiro olhar. Algo semelhante ao mecanismo do amor à primeira vista. Há outros, porém, que dependem de um convívio, que irá abrir e revelar afinidades não se dão de imediato.

 

Essa adesão emocional costuma ser instigada por obras que têm motor autobiográfico, confessional. A obra de Lourdes Colombo pertence a esse universo que se dá de imediato à e se desenvolve escavando as metáforas que habitam a memória da pele. Memórias do específico feminino, com delicadezas de anatomia escondida, a um passo do excesso e do perverso.

A artista exercita uma coragem de expressão que não escorrega no recurso fácil do humor e sarcasmo.

 

Acionados neste tipo de trabalho, a ironia e o riso acabariam construindo proteções e falseando o que existe de mais verdadeiro nesse processo, a transubstanciação em arte de emoções vividas.

 

As obras são armadilhas de sedução e sua autora deixa isso claro desde a escolha dos materiais e das cores. Há o vermelho (sangue) e oposto, o branco (inocência). O veludo, com a maciez ao tato, remete a carnalidade do sexo quanto ao afago e o carinho. A presença almofadas liga-se ao abraço, ao aconchego. A costura, à passagem do tempo.

 

O tema recorrente, como DECANTAÇÃO DE ALMA, é o desenvolvimento afetivo e sexual de uma mulher. O caminho que começa na descoberta do desejo e do corpo e se realiza no exercício da sexualidade, no encontro amoroso com o homem. A vida está latente nas flores de veludo, nas nesgas verticais, nas pérolas (óvulos) e na parafina derramada (esperma).

O vermelho, obsessivo, onipresente, apresentou-se nos trabalhos de Lourdes Colombo desde quando ela se ensaiava na pintura, feita de camadas espessas e modulares de tinta, com rigor geométrico e minimalista apenas quebrando pela intensidade do pigmento, arrancado para deixar palimpsestos de tons contrastantes, ao fundo.

 

As cores eram escolhidas no estojo de maquilagem, nas diversas opções de pigmento oferecidas pelos batons. A carnalidade sedutora da massa do batom logo iria substituir e dramatizar ainda mais a densidade da tinta. A superfície gordurosa, que poreja umidade, serviu de material para toda uma série de pinturas-objeto, por vezes delimitada entre vidros, que iriam se constituir na origem das peças atuais. Impossível negar que Lourdes Colombo investe em trilha tributária da obra da inglesa Cathy de Monchaux, apresentada na 22. Bienal internacional

de São Paulo, em 1994. Todos temos alguma filiação, seja consanguínea ou artística. É quando parentesco formal aponta para critérios de excelência, como Monchaux.

A artista brasileira, no entanto, não tem (como a inglesa) o foco na dor e na morbidez e sim no prazer e na descoberta dos sentidos. Daí porque não utiliza as ferragens torturantes de MonChaux, mas Seus veludos, em formatos que referem a anatomia feminina. Mesma razão qual, afastando-se do modelo, lança mão de espelhos; símbolo da vaidade da vaidade e das aparências construídas pela maquilagem, mas também índice do autoconhecimento alcançado pelo mirar sem subterfúgios a própria face.

 

Talvez a metáfora mais eficiente construída por Lourdes para esta exposição seja "segredos", a gaiola (coração, peito arfante, sexo) que promete seu interior ao abrir do zíper. Sob a ação do zíper, vale lembrar, os corpos se livram das roupas e se revelam à entrega.

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